01/04/2007

Ateísmo e Fé


“Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e Vos não amam” (Oração do Anjo de Portugal – Fátima, 1916).

Há algum tempo, um articulista do suplemento cultural de prestigioso jornal, reconhecendo a antipatia que a palavra ateu causa na maioria das pessoas, propôs, copiando a idéia de outros ateus americanos, que aquele nome seja substituído por outro mais simpático, com carga de significado positiva, por exemplo a palavra “brilhante” (bright no original), à semelhança do que fizeram os homossexuais ianques ao autodenominarem-se gays (alegres), para amenizar o antagonismo suscitado em outrem por seu modo de vida.

Os autores da “brilhante” idéia criaram um site com a lista dos maiores ateus da história, “para encorajar outros a assumir seu ceticismo, sua noção não-religiosa da realidade, sua dúvida em relação a entidades imateriais”, acrescenta o ateu nativo.

Outro americano, um biólogo, também gestor de um site, que logo aderiu ao movimento, anotou que “nós, os brilhantes, não acreditamos em fantasmas ou elfos ou no coelhinho da Páscoa – nem em Deus”.

Não há como deixar de sorrir ao ler a proposta, pela franqueza quase ingênua com que essas mentes “brilhantes” desvendaram em público as mais recônditas razões de seu ateísmo, que se entremostram sob a convencional ostentação vaidosa, baseada na pseudofundamentação científica de sua crença.

O ateísmo rejeita a natureza espiritual do homem, embora a sua mera existência e condição de ser racional clamem em favor dela. O ateísmo é, portanto, uma revolta contra a natureza. Daí a aversão que a própria palavra suscita - como bem observaram os proponentes da idéia - no comum das pessoas. Daí também a inutilidade de mudar-lhe o nome – “a rosa, com outro nome, teria o mesmo cheiro”, diz a Julieta de Shakespeare – pois certas coisas têm odor inconfundível com qualquer nome.

Não deixa de ser curiosa a solução proposta. Assim como a alegria genuína só pode florescer na conformidade com a própria natureza - e por isso mesmo os santos são com justeza chamados “Beatos” (felizes), pois realizaram a plenitude de sua individualidade num desabrochar espiritual – também a razão humana só refulge plenamente ao reconhecer a própria contingência, e sujeitar-se à suprema inteligência do Criador do universo.

Analogamente, a palavra “brilhante”, em sentido figurado, sempre significou “ilustre”, “próspero”, “arrebatador”, e também “feliz”, aplicando-se em especial àquelas mentes privilegiadas, capazes, não só de um relâmpago de súbita compreensão, mas também de reduzir as outras pelo fulgor da inteligência. Ao contrário, é um paradoxo autodenominarem-se “brilhantes” indivíduos cuja mente opaca, porque centrada num auto-suficiente narcisismo, revela-se mais impenetrável à luz da verdadeira intelectualidade. Para esses mais calharia o epíteto de “tenebrosos”.

Ao inverso do que procuram fazer crer alguns ateus, o ateísmo nunca é conseqüência de madura reflexão, ou resultante inelutável do conhecimento científico ou filosófico; é freqüentemente uma escolha pré-racional de ordem metafísica, fruto de orgulho e rebeldia, uma manifestação da puberdade intelectual, como a acne o é da biológica.

Para afirmar o próprio ego, o adolescente busca rejeitar a autoridade; a constatação é de psicologia elementar. Não é raro, nesta fase, a rebeldia juvenil manifestar-se como ateísmo Só que com o tempo o jovem normal supera essa etapa, insere-se como indivíduo e como ser humano na ordem hierárquica da sociedade e do mundo. Amadurece e torna-se adulto, freqüentemente retornando à fé aprendida na infância, numa volta superior da espiral de crescimento intelectual, ou, se não a teve, buscando com sinceridade respostas às grandes questões metafísicas, o que pode levar à conversão.

Pode dar-se que o ateísmo juvenil perdure por inércia na idade adulta, por falta de reflexão ou desinteresse; assim também há indivíduos “religiosos” por inércia, a carregar uma “fé” puramente social e convencional. Ateus (e crentes) deste tipo são em geral tolerantes, e, se bem formados, respeitadores das crenças alheias.

Coisa bem diversa é ateísmo militante, cujos aderentes encaram a descrença como dogma, e a destruição da fé em Deus como um apostolado. Esses, em sua revolta anti-espiritual contra a autoridade divina, fixam-se na adolescência, e elegem o próprio ego como deus de si mesmos. A posteriori, buscando justificativas racionais para a escolha feita, encantam-se ainda mais com a própria inteligência, sobretudo se adquiriram um cabedal de informações científicas e filosóficas, ou lograram reconhecimento da seleta igrejinha do mundo acadêmico, cujo shibboleth consiste precisamente na profissão de fé materialista e atéia.

Todavia, ao contrário do que propalam, sua opção nada tem de racional, explicando-se melhor por um processo emocional.

Ilustração exemplar desse processo é fornecida, numa narrativa autobiográfica, pelo jornalista e escritor Paulo Francis, ex-guru de uma geração de esquerdistas brasileiros antes de renegar o marxismo, o que o transformou ipso facto na besta-fera do seu antigo cortejo de aduladores

Francis, que infelizmente recalcitrou no ateísmo até sua morte repentina, assim descreve o episódio de sua “conversão”:

“Foi no estribo de um bonde, ... que, finalmente, cheguei à conclusão de que God não existia. Eu vinha discutindo comigo mesmo há (sic) meses, a polêmica mais difícil que já tive na minha vida, e, de repente, as peças do quebra-cabeça entraram todas no lugar. Uma sensação maravilhosa, uma prize (sic), o corpo todo se relaxou, o vento na cara ficou vivo, a mão no balaústre se fortaleceu (“Paulo Francis Nu e Cru”- Editora Codecri – Rio, 1976 – p. 89)”.

Como se vê, a opção ateísta nada tem de racional: onde se nota, no relato de um dos mais brilhantes e festejados intelectuais brasileiros do último quartel do século XX, qualquer indício de racionalidade? Onde o silogismo, onde a prova intelectual, onde o cabedal de informação científica que é alardeado pelos “brilhantes” como fundamento de seu ceticismo?

Ao contrário, a crer em Francis (e nada indica que o seu processo difira do de outros ateus, a não ser na sinceridade do relato), a opção pela descrença antes resulta de uma prise pré-intelectual que se aproxima curiosamente do que um zen-budista denominaria de “pequeno satori”. O processo vivenciado por ele guarda analogias com a técnica zen denominada koan: o praticante rumina continuamente durante longo tempo um paradoxo insolúvel (por exemplo: “como era meu rosto antes de nascer?”), até que a mente exausta rende-se e deixa ruir o arcabouço conceitual.

Isto permite que o indivíduo experimente uma súbita percepção da realidade sem a interferência dos processos mentais, cujo sintoma mais claro, no caso de Francis, foi a nitidez de suas sensações físicas: o vento no rosto, a força ao empunhar o balaústre. Ao mesmo tempo, “todas as peças do quebra-cabeças encaixaram-se em seus lugares”. Trata-se, obviamente, de uma experiência emocional, quase mágica, logo anti-racional.

A diferença é que o praticante zen interpreta essa experiência em termos da Weltanschhaung budista: “não há eu nem outro, apenas a natureza de Buda”, e a isto denomina satori, ou iluminação. Francis, sem essa referência, interpretou-a em termos de uma “conclusão” pela inexistência de Deus, quando o que se esfumara fora apenas a “idéia” de Deus por ele formulada: na verdade um ídolo modelado pela mente do próprio sujeito. Trata-se aqui, mais uma vez, do clássico erro do pensamento moderno, de tomar o “conhecer” pelo “ser”, a confusão entre gnosiologia e ontologia: “o que existe em minha mente é real; o que não existe em minha mente não é real”. Eis aí toda a tragédia do nosso tempo.

Por conseguinte, embora ostentados como de rigor pelos ateus falantes, tais como os auto-intitulados “brilhantes”, o descortino intelectual e o conhecimento científico nada têm a ver com o ateísmo. Muitos dos ateus mais empedernidos ostentam uma ignorância impenetrável sobre tudo o que não se relacione aos seus próprios conceitos, que a seu ver constituem nada menos que a enciclopédia do conhecimento.

Acreditando compor uma seleta elite, esses ateus, ao fazerem da própria descrença um dogma e da “ciência” uma seita, olham de cima para os que crêem em Deus, considerando-os como pessoas de mentes infantis, incapazes de escalar as alturas de sua própria compreensão. Isso os infla ainda mais de auto-importância e satisfação consigo mesmos.

Essa visão tem a vantagem suplementar de permitir a criação de uma moral “ad hoc”, da qual tudo que é penoso pode ser excluído. “Se não há Deus, tudo é permitido”, clama uma personagem de Dostoievsky”, creio que o Raskolnikov de ”Crime e Castigo”. Sendo assim, cada um pode gozar a vida como lhe parecer. Isso e mais o louvor dos doutos: que mais pode um ego desejar?

Como a inexistência de Deus carece de prova filosófica – ao contrário de sua existência, demonstrada racionalmente desde Aristóteles (vide artigo a tal propósito neste site) – o ateu inseguro, mas presunçoso, precisa reforçar a própria descrença (ou antes, crendice) pela corroboração de outros egos e o aplauso público.

Daí a necessidade de criar um site com o rol dos ateus famosos, em cuja seleta companhia o ateu medíocre complacentemente se coloca, “brilhante” entre seus iguais, mas olimpicamente acima da humanidade ordinária. Apenas, infelizmente, não se podem incluir naquele rol Aristóteles, fundador da ciência ocidental; nem Descartes, pai do racionalismo moderno; nem Galileu, ícone predileto do martiriológio anti-católico, mas ele próprio auto-proclamado católico; nem Einstein; et caeteri , apenas para citar alguns dos reconhecidos pelo establishment acadêmico.

Daí também a arrogância ridícula de lançar no mesmo balaio a crença em Deus e no coelhinho da Páscoa, como fez o tal biólogo ianque, para desqualificar intelectualmente, de maneira bem pouco científica e nada ética, aqueles que professam ponto de vista diverso do dele próprio. A crença em elfos e fantasmas calha melhor ao ateísmo que ao teísmo, pois, como disse Chesterton, o problema do céptico não é não crer em nada, mas sim crer em tudo.

Os falsos “brilhantes” crêem, sim, em elfos, fantasmas e no coelhinho da Páscoa, desde que convenientemente apresentados em jargão acadêmico, bem disfarçados com a capa do racionalismo – essa fé irracional na razão – e devidamente chancelados com o aval da “comunidade científica”.

Embora invocando Dawkins, autor de “O Relojoeiro Cego” (ou seria “O Biologista Cego”?), que afirma que a natureza tem design, mas não designer, o subscritor do artigo admite que “afinal, a ciência não pode responder a perguntas como ‘O que existia antes do que existe?’”.

Trata-se de um rasgo de honestidade intelectual que obrigaria qualquer ateu, que não cegado pela paixão dogmática, a conceder à crença em Deus pelo menos o benefício da dúvida.

Não é essa a conduta de Dawkins, que no livro citado busca precisamente comprovar “cientificamente” a inexistência do “Designer” da natureza. É uma tentativa canhestra. Numa de suas linhas de argumentação vale-se de um programa de computador, apto a formar uma sentença de Shakespeare a partir da combinação “casual” das letras do alfabeto.

Esqueceu-se o ilustre sábio de que, sem um experimentador inteligente, capaz de conceber o computador e o programa, e determinado a alcançar um objetivo preciso (a “demonstração” em causa), não haveria experimento possível. Isto para não mencionar a necessária preexistência do idioma inglês e da obra do dramaturgo de Stratford, presumivelmente, também, produtos da inteligência e da intenção.

Para efetivamente comprovar a possibilidade de produzir-se um “design” sem “designer”, o sagaz cientista deveria realizar um experimento sem experimentador, pois este, forçosamente, assume a função de Criador do seu micro-sistema, demonstrando assim o oposto do que pretendia.

Mas não se trata de uma exceção, pois muitos ateus e materialistas abusam da equivocidade do termo “ciência” para eximir-se de comprovar a razoabilidade da própria crença.

Cumpre distinguir entre ciência como método de conhecimento experimental do mundo fenomênico, apto a produzir conclusões verdadeiras no estreito âmbito de sua competência, mas que obviamente não pode mesmo responder às grandes indagações metafísicas, e “ciência” como seita, pseudo-religião, ou anti-religião, e como tal congregação de aderentes a um conjunto de proposições filosóficas hipotéticas, mas tidas como apodícticas, porque pretensamente demonstradas pela “ciência” na primeira acepção.

Essa distinção é propositalmente escamoteada pelos ideólogos do ateísmo, que deslealmente apresentam teorias e hipóteses incomprovadas e incomprováveis como verdades científicas cabalmente demonstradas, no afã de demolir a fé em Deus e ridicularizar aqueles que nele crêem. Não por acaso, em recente entrevista, aquele mesmo ideólogo materialista declarou seu “desprezo” por quem crê num Deus criador. Tal comportamento sectário aproxima-o dos mais estreitos fanáticos de falsas crenças religiosas - “et pour cause”.

O “ateu de passeata” é o análogo complementar do falso crente: acredita piamente em si mesmo e na própria incredulidade, como aquele na própria “idéia” de Deus. Ambos são, no fundo, adoradores de si mesmos.

Ao revés, o homem que crê em Deus e professa a Revelação contida na doutrina católica, embora também sujeito, em razão do pecado original, à tirania do egoísmo, aceita a priori a própria contingência: sabe-se finito, mortal e sujeito a leis – naturais e morais - que não criou nem pode alterar. Essa humildade embrionária é o solo no qual pode germinar, pela graça da Fé, a virtude da Fé.

Fé não é crendice, nem ausência de dúvida, inerente à própria condição humana, tal como se apresenta após a queda. Fé é, ao mesmo tempo, graça e virtude.

A Fé enquanto graça é um Dom gratuito de Deus: não pode crer senão aquele a quem Deus concedeu esse favor, sendo a predisposição necessária para tanto a constatação da própria insignificância, aquela humildade embrionária acima referida, e a aceitação do magistério da Igreja. A graça, uma vez aceita e não impedida, torna-se habitual no “estado de graça”, cultivado pela observância dos Mandamentos e a freqüência aos Sacramentos. Age eficazmente na alma, suscitando a virtude teologal do mesmo nome, coirmã da Esperança e da Caridade.

Fé enquanto virtude é algo que pode crescer, como um “organismo espiritual”, em sinergia com outras virtudes, pela prática da oração e sempre sob o influxo da graça, até o desabrochar de uma plenitude de certeza, que já é contemplação. O fim da contemplação é o amor de Deus, a Caridade, a última das virtudes, a consumar-se na visão Beatífica, e o primeiro e maior dos mandamentos:

“Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças” (Mc 12, 28).


Victor Peregrino, A.C.Montfort